por Paulo Afonso Garrido de Paula[1]
Na sua expressão mais antiga a guarda corresponde a um atributo do poder familiar. Este é definido doutrinariamente como o conjunto de direitos e deveres dos pais em relação à pessoa e ao patrimônio dos filhos menores de dezoito anos de idade. A guarda é um desses caracteres, sendo considerando o mais simbólico, compondo com maior intensidade a própria essência do poder familiar.
Enquanto atributo do poder familiar a guarda consiste no direito dos pais de ter os filhos sob sua companhia e de reclamá-los de quem ilegalmente os detenha. Assim, os filhos menores devem “acompanhar” os pais, ou seja, os filhos devem estar junto dos pais, mantendo-se unidos na mesma posição e seguindo em idêntica direção. Este direito é oponível pelos pais a qualquer um, terceiros e o próprio Estado, nascendo, em regra, do estabelecimento natural do vinculo de filiação decorrente da procriação. É um magno direito, consectário de um dos mais antigos valores da humanidade.
Guarda não se confunde com posse, porquanto esta diz respeito à fruição de coisa. E, notadamente depois da Constituição da República de 1.988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, criança deixou de ser objeto de intervenção do mundo adulto, passando a ser sujeito. Assim, a guarda também deve ser enxergada como direito dos filhos menores de estar junto aos pais, decorrência inquestionável do direito à convivência familiar consignado na nossa referida Magna Carta. Assim, em resumo, os pais têm o direito, e ao mesmo tempo o dever, de ter os filhos sob sua companhia.
O poder familiar é exercido pelo pai e pela mãe. No passado, somente era exercido pelo pai; depois, passou a ser exercitado por este com a colaboração da mãe; hoje, exercido pelos dois, em igualdade de condições. Assim, o direito de guarda, de ter o filho consigo, pertence indistintamente ao pai e à mãe.
Na constância da sociedade conjugal ou de convivência o exercício da guarda não importa maiores problemas. Todavia, não é questão simples quando da separação ou do divórcio, pois com a separação, de fato ou de direito, ou com o divórcio, a guarda, outrora conjunta, passa a ser unilateral ou compartilhada. Nos termos da lei, “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” (Código Civil, art. 1.583, § 1º).
A guarda unilateral dos filhos comuns continua sendo a solução mais freqüente quando da separação dos pais. Diz o Código Civil que ela deve ser atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar, saúde, segurança e educação (artigo 1583, § 2º). Nesta hipótese, resta acordado ou fixado o direito de visitas, de modo que o outro possa ter a companhia dos filhos em dias determinados, inclusive finais de semanas e feriados. Em regra, o filho é retirado da residência daquele que se encontra no exercício da guarda, permanecendo junto e sob guarda temporária do “visitante”; em situações excepcionais, o direito de estar junto fica restrito a dias e horários determinados, sob supervisão de serventuários da justiça.
Não raras vezes estabelecem-se disputas quanto ao exercício da guarda. Pai ou mãe pretendem o exercício exclusivo do direito de ter filho sob sua companhia, desejando afastar o outro desta possibilidade pelos mais variados motivos, desde nobres como o zelo pela segurança, integridade ou saúde até os mais mesquinhos, como vingança ou punição pelo rompimento da relação de casal. Os filhos passam a ser os objetos destes litígios e os instrumentos de convencimento do juiz, autoridade a quem compete decidir sobre o exercício da guarda. Assim, os pais estabelecem um verdadeiro “vale-tudo”, procurando influenciar os filhos para que, ouvidos, possam falar a seu favor e em detrimento do outro. Na tentativa de minimizar este problema foi editada a Lei nº 12.318, dispondo sobre a “alienação parental”, expressão genérica cujo significante mais próximo consiste na interferência no livre pensar do filho de modo a prejudicar sua relação com o outro genitor. A própria lei exemplifica formas de alienação parental: realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; dificultar o exercício da autoridade parental; dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.
A prática de ato de alienação parental constitui abuso moral do qual decorre sanções civis ao seu autor, como a perda da guarda ou a suspensão do poder familiar, sem prejuízo da adoção de medidas tendentes à proteção da criança.
Diga-se, por outro lado, que a falta de pagamento de prestação alimentícia não tem o condão de impedir o exercício do direito de visitas e nem se assemelha à alienação parental. Os alimentos para os filhos, de acordo com a lei, devem ser prestados por ambos os pais na proporção dos seus recursos, sendo composto pelo necessário à condição social, inclusive para atender às necessidades de educação. Quem os deve e não satisfaz a obrigação fica sujeito especialmente às medidas de caráter patrimonial, de modo que não se cogita da incidência de sanção moral sobre o relacionamento com os filhos. Somente o descumprimento injustificado do dever de sustento pode acarretar a destituição do poder familiar e, via reflexa, a cassação do direito de visitas e o próprio direito de guarda. A mera inadimplência não, pois o desenvolvimento saudável, elemento da proteção integral, reclama que no processo de desenvolvimento da criança as figuras de ambos os pais estejam presentes.
Em resumo, olhar para o Direito da Criança importa considerar que a guarda é muito mais o direito dos filhos à companhia dos pais do que direito dos últimos à presença dos filhos. O superior interesse das crianças se sobrepõe aos interesses dos adultos, determinando comportamentos onde as soluções sobre a companhia dos filhos brotem dos princípios da paternidade e maternidade responsável, expressões necessárias à compreensão do direito à convivência familiar.
São Paulo, dezembro de 2010.
[1] Professor de Direito da Criança e do Adolescente da PUC-SP, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e um dos co-autores do anteprojeto que deu origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
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