por Cléo Fante
Cléo Fante é pesquisadora pioneira do bullying escolar no país e consultora da ONG Plan Brasil |
Todos nós já fomos crianças um dia. Quem não se recorda das brincadeiras que nos faziam rir e às vezes chorar de raiva ou de vergonha? Sem graça, inconvenientes, inconsequentes, maldosas. Mas tudo não passava de brincadeira.
As brincadeiras fazem parte das relações; aproximam, integram, incluem. Entre os estudantes, são essas brincadeiras que tornam o ambiente escolar divertido e descontraído, que estimulam a frequência, a permanência, o desempenho, a aprendizagem, o gostar da escola.
No entanto, quando as brincadeiras perdem a essência da espontaneidade, da diversão e do prazer podem se converter em violência. Nesse ponto é que está o sinal de alerta. Existe uma linha muito tênue entre brincadeira e violência. Na brincadeira deve existir um equilíbrio entre as partes e todos se divertem, se descontraem, participam. Quando há desequilíbrio, onde uma parte se diverte e a outra é constrangida, humilhada, intimidada, a brincadeira acabou e aí começa a violência.
Assim como as brincadeiras são parte das relações, pode-se dizer que a violência de igual modo. Quem não se recorda de cenas de violência envolvendo familiares, vizinhos, amigos ou a si mesmo.
A violência é cruel, machuca, faz sofrer. Ao longo dos tempos foi se instalando sorrateiramente em nosso cotidiano. Faz parte de nossas vidas, de nossas histórias. Está presente em todos os contextos sociais, nas relações entre adultos, destes com as crianças e vice-versa.
Infelizmente, entre as crianças se torna cada vez mais visível, em especial no contexto escolar. Dentre as formas de violências que ocorrem entre os estudantes, há uma que desperta a atenção e o interesse de estudiosos de todo o mundo, o bullying.
Confira levantamento nacional – realizado em 2010 pelo Ceats/FIA (Centro de Empreendedorismo e Administração em Terceiro Setor da Fundação Instituto de Administração) e pela ONG Plan Brasil – sobre a situação de violência e manifestações de bullying nas escolas brasileiras |
É um fenômeno antigo, tanto quanto a própria instituição escola. No entanto, seus efeitos ao longo do tempo foram ignorados, por ser interpretado como brincadeiras da idade.
O bullying não pode ser confundido com brincadeira. É violência gratuita e intencional. É marcado por um jogo de poder, onde os mais fortes – do ponto de vista físico, emocional, econômico, social – convertem os mais fracos – sob os mesmos pontos de vista - em objetos de diversão e prazer.
O autor de bullying é movido pelo desejo de popularidade, aceitação, status de poder no grupo social. Para isso, submete aquele que elegeu como “bode expiatório” à situação de inferioridade, ao escárnio público na escola ou na internet, ao psicoterrorismo. Humilha, constrange, difama, intimida, persegue, amedronta. Quanto mais atormenta a vida do outro, mais cresce a sua popularidade. Torna-se temido e muitas vezes respeitado entre os colegas de escola e/ou fora dela.
Geralmente, escolhe aquele que não oferece resistência, o vulnerável, o mais fraco, o menor, o que tem poucos ou nenhum amigo. As vítimas potenciais são os que apresentam exacerbada timidez, introspecção, dificuldade relacional, diferenças individuais positivas ou negativas, dificuldade de se impor e de se defender.
Suas ações são validadas por muitos que assistem e acabam por participar - direta ou indiretamente -, como espectadores ativos, passivos ou omissos.
É claro que há os que não concordam com o comportamento negativo dos colegas, tentam defender as vítimas, mas nem sempre conseguem. Outros se divertem com a intimidação e o sofrimento alheio. Há, ainda, os que se omitem temendo ser eleitos como próximos alvos dos maus tratos.
A vítima acuada, na maioria dos casos, sofre em silêncio. Por medo de represálias ou da incompreensão dos adultos ou dos colegas, da vergonha de se expor ainda mais ou de não sobrecarregar os familiares com mais problemas. Carrega consigo a dor, a vergonha, a raiva, tanto daqueles que a fazem sofrer como de si mesma, por não saber o que fazer.
Os efeitos do bullying afetam a todos, em especial às vítimas, que poderão ter seu processo de desenvolvimento comprometido. Dependendo da gravidade da exposição e temporalidade, as sequelas podem acompanhá-las além do período acadêmico. Poderão se tornar adultos inseguros, tensos, agressivos, deprimidos, com dificuldades relacionais e afetivas. Poderão desenvolver transtornos e doenças de fundo emocional, adotar condutas ofensivas, reproduzir o sofrido em outros contextos, como o laboral e familiar.
Em alguns casos, o bullying está associado aos massacres que ocorreram em escolas, com maior incidência nos Estados Unidos. No Brasil, as tragédias em Taiuva (SP, 2003), Remanso (BA, 2004) e Realengo (RJ, 2010) retratam as sequelas do bullying.
Durante anos os protagonistas de tais tragédias foram alvos de deboches, humilhações e perseguições gratuitas por serem diferentes dos demais. Ressentimentos foram ao longo do tempo represados, pensamentos de vingança foram se cristalizando, problemas foram se acumulando. Um componente sozinho não é capaz de produzir tanto efeito, mas a junção de fatores, emocionais, familiares, econômicos, sociais, laborais, associada ao bullying é.
Obviamente nem todas as vítimas de bullying chegarão ao trágico desfecho de matar e matar-se. Há os que sofrem, os que enfrentam, os que superam. Há os adultos que, quando instrumentalizados, oferecem apoio, segurança e auxílio às vítimas e autores. Isso é imprescindível.
Por outro lado, obviamente, que nem tudo o que acontece na escola é bullying. Há provocação, desavença, briga, conflito, indisciplina, desrespeito, incivilidade. Existe uma gama de situações que ocorrem entre os estudantes. O que vejo é certo exagero por parte de muitos adultos, que tentam explicar o bullying de forma precipitada e equivocada, o que tende a banalizar e alarmar a sociedade.
Muitas escolas, equivocadamente, estão querendo acabar com as brincadeiras. As crianças estão sendo constantemente observadas, advertidas, engessadas. As brincadeiras, mesmo as agressivas, inconvenientes ou inconsequentes, fazem parte das relações. Deixem as crianças brincarem. Os adultos devem observar à distância e quando as brincadeiras perderem sua essência é que devem intervir.
Afinal, brincar é direito de crianças e adolescentes que deve ser preservado. O que não se pode permitir é a ocorrência de bullying. Todos devemos velar pelos direitos de crianças e adolescentes. Punir ou criminalizar não é a solução. Prevenir é melhor do que remediar, diz o velho ditado.
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