quarta-feira, 23 de abril de 2014

Infância ameaçada nos portos

Crescimento do fluxo de turistas durante a Copa do Mundo deve acentuar os abusos sofridos pelas crianças

Ao desembarcar de transatlânticos para assistir à Copa do Mundo, os turistas vão se deparar com 

o abandono da infância brasileira. Nos portos das cidades sedes do mundial de futebol, meninas 

seminuas vendem os corpos em troca de um prato de comida. Garotos franzinos carregam malas 

e vendem bugingangas para sobreviver. Jovens moradores de rua fumam crack à beira-mar para 

tentar fugir da rotina de desamparo e de desespero. O governo modernizou a estrutura das 

regiões portuárias, mas não conseguiu acabar com a violação dos direitos das crianças nessas 

áreas. Os terminais marítimos e fluviais de todo o Brasil são pontos para a exploração sexual de 

adolescentes, o trabalho infantil e o uso de drogas.

A equipe do Correio Braziliense/Diario viajou 8 mil quilômetros e visitou quatro capitais para 

conhecer a realidade de quem vive em áreas onde o crescimento econômico nem sempre é 

sinônimo de avanço social e mostrar os principais abusos sofridos por crianças e adolescentes em 

regiões portuárias.

O governo federal estima em R$ 33 bilhões os investimentos em infraestrutura realizados para a 

Copa em todas as cidades sedes. Já o repasse para o combate à exploração sexual infantil no 

ano passado ficou em R$ 1,3 milhão - o equivalente a 0,03% da despesa total em obras. 

Em Manaus, casas de palafitas vizinhas ao porto transformam-se em bares, onde garotas 

consomem drogas e vendem sexo a R$ 10. Homens buscam meninas em jet skis, para levá-las aos 

pontos de exploração. Barcos proibidos de circular por falta de documentação são usados como 

motéis, para onde são levadas as meninas aliciadas. “Por conta da Copa, a fiscalização fluvial 

intensificou-se. Tem dezenas de barcos ancorados, sem poder navegar, mas em vez de resolver 

o problema, os donos transformaram em motel, cobrando R$ 40 por hora”, afirma 

Clodoaldo Santos, conselheiro tutelar.

A desigualdade é nítida também no Porto de Salvador. O centro histórico, vizinho ao terminal de 

embarque e desembarque, é a primeira parada dos turistas. Crianças espalham-se pela área do 

Mercado Modelo para atrair a atenção dos visitantes endinheirados. Nadam no mar, próximo à 

entrada do comércio, à espera de estrangeiros dispostos a atirar moedas. 

Instruídos por guias ou conquistados por gritos que pedem money, do alto da rampa, turistas 

divertem-se com a disputa dos meninos pela esmola lançada ao mar. A postos, garotos usam 

frágeis máscaras de mergulho para enxergar as moedas no fundo da água. “Venho desde os 5 

anos. Se a gente junta US$ 5, os comerciantes pagam até R$ 14”, relata Duro, 16 anos. O 

dinheiro catado no mar se transforma em crack. 

Férias

A antecipação de férias por conta da Copa do Mundo pode agravar as violações dos direitos da 

infância durante o evento. “As escolas mudaram os calendários de férias por causa da Copa. 

Durante o evento, todas as crianças estarão fora da escola e nós sabemos que muitos pais não 

têm com quem deixar seus filhos. Dessa forma, as crianças ficarão ainda mais expostas, esse é 

um fator de risco”, diz a coordenadora de programas da Childhood Brasil, Anna Flora Werneck.

A rifa do sexo das meninas

Uma linha imaginária divide as duas áreas do Porto de Manaus: de um lado, há pequenos e 

malcuidados barcos, usados para transportar populações ribeirinhas, superlotados e, às vezes, 

sem documentação. Do outro, ficam ancorados os luxuosos navios estrangeiros, recebidos com 

festa. Ao cruzar o portão das docas, os visitantes enxergam um lado nada festivo de Manaus. 

A feira, a poucos metros do desembarque, apresenta uma capital que rifa a infância de suas 

meninas. Garotas entre 10 e 17 anos, com o corpo à mostra e os pés calçados em chinelos 

velhos, passeiam em meio às barracas de frutas, peixes e verduras, com blocos de papel nas 

mãos ou nos bolsos.

De acordo com o Conselho Tutelar de Manaus, meninas são usadas como iscas por comerciantes, 

às vezes os próprios pais, para atrair fregueses. Quando homens aproximam-se, além de oferecer 

os produtos, elas vendem um bilhete por R$ 5. Quem compra tem o nome incluído em uma lista. 

Se for sorteado, o “prêmio” é uma noite de sexo com uma das participantes do esquema.

Enquanto metade do grupo trabalha com a venda da rifa, o restante atende os sorteados da 

semana anterior. O dinheiro arrecadado é dividido igualmente entre as garotas. 

“O falso prêmio é um eletrodoméstico. Isso serve apenas como disfarce para o esquema. 

Apreendemos o caderno com a lista de clientes e eram somente homens adultos. Temos 

depoimentos de testemunhas. O sexo aqui é vendido por R$ 5. Fazendo rifa, elas descobriram 

uma maneira de ganhar mais”, afirma Clodoaldo Santos, conselheiro tutelar em Manaus.

Ponto de tráfico e prostituição

Publicação: 20/04/2014 03:00

A pujança econômica do Porto de Suape, a 40 km do Recife, não se reflete nas comunidades 

vizinhas. Só nos últimos cinco anos, mais de 40 mil pessoas mudaram-se para o entorno do 

terminal para trabalhar, atraídas por salários mais altos que a média. Cidades pequenas e, até 

então, pacatas viram a violência aumentar, o uso de drogas tornar-se comum e a exploração 

sexual ser utilizada como fonte de renda de famílias com numerosos filhos. Cabo de Santo 

Agostinho, com 185 mil habitantes, é uma das regiões mais afetadas. Tornou-se ponto de tráfico 

e de prostituição.

Luana*, 13 anos, é uma das jovens assistidas pelo Conselho Tutelar do Cabo. Aos 11, ela fugiu de 

casa pela primeira vez. Sem mala ou documentos, mudou-se para Porto de Galinhas com o 

marido da irmã, um homem de 28 anos, traficante e usuário de drogas. “Fiquei um ano com ele. 

Dormia com um revólver do lado do travesseiro, para proteger a boca de fumo. Eu usava droga 

também, em troca eu dormia com ele. Depois, ele cansou, eu também. Eu tinha 12 anos”, 

relata.

O nome masculino tatuado no braço da menina não a deixa esquecer que foi tratada como 

objeto e propriedade. Seduzida, ela deixou que o traficante a marcasse como gado. As feridas 

invisíveis, porém, superam as cicatrizes externas. “Eu era criança quando ele me levou. Me 

arrependi de ter gostado dele”, confessa. Luana é dependente química. Sai com os homens da 

cidade em troca de uma porção de crack ou de maconha. Em dezembro, foi estuprada por dois 

homens e os denunciou à Justiça. 

Em nota, o Complexo Industrial Portuário de Suape informou que “atua como articuladora junto 

às comunidades residentes na região, dispondo de equipe especializada para realizar o 

acompanhamento social das famílias, a partir de visitas técnicas e levantamento das 

comunidades”. 

*Todos os nomes dos personagens dessa reportagem são fictícios

Fonte: Diário de Pernambuco

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