quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

30 anos de Aids: a história social de uma epidemia e da resposta brasileira

Cada uma das três décadas da epidemia da Aids no Brasil está implicada em valores éticos e políticos articulados por profissionais de saúde, pesquisadores e pelo movimento social, nacional e internacionalmente.

Anos 1980. A Década do Sofrimento e da Solidariedade

Lembrar o sofrimento profundo de todas as pessoas vivendo com HIV e AIDS nas primeiras décadas é fundamental. Esse sofrimento permanece até hoje, onde impera a negação, onde a resposta social e programática enfraquece, é ineficaz ou inexiste.

A solidariedade surgiu nos anos 1980 como uma resposta humana dos amigos, familiares e amantes dos portadores de HIV/AIDS. Naquele contexto assustador – de uma doença desconhecida, sem tratamento e sem previsão de cura –, a construção da cidadania pós-ditadura militar também articulava a solidariedade de diversos movimentos sociais que contestavam a desigualdade, a violência racista e sexista, e a dominação de classe da época. Inspirados na teologia e na pedagogia da libertação, no movimento da reforma sanitária e nos nascentes movimentos sociais (homossexual, feminista e negro), articulavam-se noções como “somos todos positivos”, “somos parte da solução e não o problema”, ou queremos a “cura” e não a “morte civil”. Os princípios éticos eram a solidariedade, a valorização da diversidade, e a equidade que se organizavam politicamente na ideia mobilizadora da democracia como princípio, da cidadania e da saúde como um direito básico de cada cidadão.

Esses foram os anos em que o cuidado aos doentes e o controle do sangue estavam no centro da cena. Foi com grande demora (apenas no fim da década) que proibiu-se o “negócio do sangue” e conseguiu-se contrapor o princípio da saúde como direito à noção da promoção da saúde como negócio e mercadoria.

Anos 1990. Direitos Humanos, Justiça e Vulnerabilidade Social

Do sofrimento e da solidariedade, das demandas sociais locais e estaduais que exigem a criação de uma resposta governamental, resulta, finalmente, no Programa Nacional de AIDS. Ao mesmo tempo, a Constituinte de 1988 sustenta a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990, com o objetivo de garantir a todos os brasileiros a prevenção e o tratamento, sem qualquer tipo de discriminação.

Começa-se a investir fortemente e ampliar a prevenção - centrada na promoção universal do uso do preservativo, nas políticas de redução de danos entre usuários de drogas injetáveis (com distribuição de seringas). Cresce a mobilização social e de profissionais de saúde no SUS a favor de uma política de acesso aos medicamentos eficazes, acirrada em 1996 com a comprovação da eficácia do chamado “Coquetel com Anti-Retrovirais”. O Brasil foi o primeiro país a contrariar o consenso das agências internacionais e do Banco Mundial guiados pela teoria do cost-effectiveness, furou o bloqueio dos economistas conservadores (neo-liberais) e tornou insustentável o argumento “não há nada a fazer para pessoas vivendo com AIDS em países mais pobres”. Deu no New York Times:

“Brazil is showing that no one who dies of AIDS dies of natural causes”

O Brasil venceu a batalha moral pelo acesso ao tratamento em escala global. A Lei Sarney garante acesso ao tratamento e demonstra que vontade política e boa gestão são cost-effective. A integralidade, a universalidade, a participação e a inclusão social (princípios do SUS e das abordagens baseadas nos Direitos Humanos) evitaram gastos porque as pessoas não adoeceram através do acesso universal à prevenção adaptada a cada grupo, ao teste anti-IIV, aos medicamentos e aos serviços de saúde de qualidade e quase eliminou a transmissão do vírus de pais para filhos ou por produtos de sangue.

Anos 2000. No Brasil e no Mundo: promover direitos tem impacto sobre a epidemia

Nos anos 2000, o Brasil se fortalece como ator nos debates globais sobre o enfrentamento da epidemia. A resposta organizada no âmbito da saúde pública e do estado laico, com respeito à diversidade religiosa mas combatendo o estigma e a discriminação sexual, de gênero e racial, assim como o direito à saúde expresso no acesso universal ao preservativo e aos antirretrovirais, demonstram a eficácia dos princípios básicos do movimento da reforma sanitária e do SUS.

Por exemplo: consolida-se um banco de dados internacional sobre medicamentos mais baratos e a noção de que vulnerabilidade ao adoecimento é também um produto social e político, cuja resposta é a solidariedade e a proteção de direitos humanos. Nos debates sobre comércio, propriedade intelectual e o uso de licenciamento compulsório em benefício da saúde pública, o Brasil é respaldado por um movimento social forte que sustenta a ação da política externa do governo brasileiro.

Finalmente, a estabilização e o “controle da epidemia” são conquistas verdadeiras das últimas décadas. Mas podemos mais. Temos recursos para curvar os índices de casos de AIDS para baixo, se ampliarmos a qualidade da atenção e da prevenção, combinarmos o acesso ao teste e ao preservativo com novas intervenções (profilaxia pré e pós-exposição, por exemplo), sem considerar nenhuma delas a única opção “mágica”, biomédica ou psicossocial. A história mostra que a prevenção e o cuidado só são eficazes em contextos de garantia de direitos humanos, sem estigma e discriminação.

Essas conquistas serão sempre ameaçadas por forças políticas com outros valores. A persistência de uma boa análise social e humanista, uma resposta baseada em direitos e um movimento militante, disposto a lutar para proteger estas conquistas é o que garante continuidade e sustentabilidade ampliada da resposta no Brasil e no mundo.

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