quarta-feira, 6 de agosto de 2014

"Mulheres-caranguejo" no mangue de Santo Amaro

Elas fazem sexo no manguezal, sob efeito do crack. Com um histórico de desestrutura familiar e pobreza, estão na base da pirâmide da prostituição

Preservativos masculinos tomam o chão no percurso apressado feito sob sol a pino. 

Desvendar o mangue da Avenida Prefeito Artur Lima Cavalcanti, em Santo Amaro, não 

é tarefa para desavisados. Um dos símbolos da paisagem recifense é também esgoto 

sexual, como diria Oswald de Andrade em seu poema Santeiro do Mangue. É abrigo de 

uma “quase espécie”, a “mulher-caranguejo”. Seres dormentes pelos efeitos do crack e 

por um histórico de desestrutura familiar e pobreza. Ocupantes da base da pirâmide da 

prostituição, não possuem dentes, carecem de banho. Têm ferimentos ou marcas deles 

pelo corpo. O dinheiro obtido no sexo barato feito na lama é gasto com drogas.

É manhã de um dia de semana. O movimento de clientes ainda é fraco se comparado 

com o da tarde e da noite. Meninas e mulheres misturam-se aos caranguejos habitantes 

da mesma lama salobra. Ao longo das trilhas construídas pelos passos constantes 

na beira do mangue, prostitutas estão “malocadas” sob guarda-chuvas. Também 

improvisam barracos de lona. Escondem assim o uso da droga.

Privacidade não existe na hora do sexo. “A gente faz em pé mesmo. Mas tem sofá lá 

dentro, bicicleta de ginástica. Tem até colchão box. Tem árvore daquelas dobradas. Mas 

não gosto das árvores. Cheguei a ver sangue nelas”, relata Juliana*, 23 anos. Os braços 

de Juliana têm cicatrizes de ferimentos provocados por ela própria. Conta que cortou-se 

em crises depressivas provocadas pelo uso do crack. “Cada ‘tiro’ que dava, me cortava”, 

lembra, referindo-se à baforada no cachimbo.

Fome

Quando o efeito da droga passa, as mulheres buscam por comida e bebida. Mas vários 

dias podem se passar sem que elas se deem conta da necessidade. “Tem cliente que 

passa e dá comida. As colegas também oferecem pra gente”, conta Fernanda*, 19, com 

corpo de menina de 12 anos e rugas em torno dos olhos comuns a mulheres maduras. 

Quanto mais suja e deteriorada pelas drogas a mulher está, mais ela é procurada pelos 

clientes, contam. E eles pertencem a variadas classes sociais e profissões. Também há os 

casados.

À noite, o número de clientes aumenta, e com eles a degradação das meninas. O banho 

é artigo supérfluo após o sexo. Quando desejam fazer a higiene, procuram a torneira 

próxima à Ponte do Limoeiro, onde estão os pescadores.


Equipes sociais tentam prestar assistência a grupo

O mangue da Artur Lima Cavalcanti cheira a violência, na maioria das vezes 

praticada por clientes ou falsos clientes. Fernanda perdeu os dentes da frente 

depois de ser atraída por um homem que a arrastou por um dos braços pela 

janela do carro. Maria passou a virada do ano amarrada a uma árvore em uma 

mata do Recife. Estava grávida. “Fui salva por um caçador que passava na hora.”

Entre as mulheres, a violência é outra constante. A mesma que foi amarrada 

ateou fogo em uma colega que dormia. A vítima teria lhe roubado R$ 10, um 

cachimbo e uma pedra. “Nem sei se morreu, mas se tivesse morrido eu ficava 

sabendo.”

Em junho, uma jovem escapou de morrer após ser esfaqueada por um 

desconhecido. Outra mulher apareceu morta na lama e um homem foi vítima de 

tentativa de homicídio. Há boatos de que um homem estaria tentando se vingar 

das mulheres porque teria contraído o HIV.

O delegado Alfredo Jorge investiga os crimes, mas não confirma o suposto 

vingador. “A tentativa de homicídio da mulher pode ter sido passional. Já a 

vítima que apareceu morta pode ter sofrido morte súbita. Quanto ao homem, não 

seria frequentador do local”, afirma Alfredo Jorge. O tráfico é intenso. “À noite, 

carros de marca boa, de gente de classe alta, param para contratar meninas ou 

comprar drogas.”

A venda do corpo por um pouco de crack

Meninas aguardam clientes para mais um programa que 

irá financiar mais um dia de consumo de drogas

As meninas e mulheres prostitutas do mangue são, em sua maioria, moradoras de Santo 

Amaro. Muito pobres, não possuem dinheiro para custear passagens para bairros mais 

abastados, como Boa Viagem, onde a prostituição acontece nas avenidas Conselheiro 

Aguiar e Domingos Ferreira. Além disso, são dependentes do crack, droga ofertada com 

facilidade no lugar. “A prostituição é igual em todo canto, mas em Boa Viagem a menina 

compra roupa, sandália. Aqui a gente vende o corpo pelo crack”, compara Juliana.

Ana Glória Melcop, da ONG Centro de Prevenção das Dependências e à frente do 

Centro da Juventude e do Programa Atitude, ambos do governo do estado, destaca a 

necessidade de uma abordagem mais eficaz junto a essas mulheres. Ana Glória planeja 

levar para as prostitutas à Profilaxia Pós Exposição (PPE), fornecida pelo estado, na 

intenção de reduzir as chances de contaminação pelo HIV após uma relação sexual de 

risco.

“É preciso uma retaguarda da saúde, da educação”, diz Ana Glória. “A escola, por 

exemplo, tem preconceito com elas. As mulheres necessitam de uma abordagem que as 

faça perceber seus direitos e deveres”, afirma. “Sou contra a retirada forçada dessas 

pessoas de lugares assim, por pior que sejam. Também sou contra o estilo de vida delas, 

mas não concordo com a limpeza da cidade a todo custo”, opinou.

Em novembro de 2012, membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da 

Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, a mesma que recebeu denúncias de 20 

pontos críticos de prostituição na capital pernambucana, estiveram no mangue da Artur 

Lima Cavalcanti para conhecer a realidade das meninas. A presidente da CPI, Erika 

Kokay, chegou a rezar com as mulheres às margens da avenida. Mas de lá para cá, nada 

mudou.

Um projeto da Comissão Pernambucana pela Paz, formada por moradores de Santo 

Amaro, prevê uma transformação. A ideia é capacitar as mulheres para trabalhar como 

guias dentro do mangue. O lugar passaria a receber visitas de estudantes.

Risco de doença não afasta clientes



Embalagens de camisinha são deixadas pelo chão

Apesar de as camisinhas se espalharem pelo mangue, a maioria dos homens pede para 

fazer sexo sem proteção. As mulheres afirmam receber propostas de mais dinheiro 

caso aceitem a relação sem preservativo. O último levantamento feito no lugar pela 

Secretaria Municipal de Saúde constatou que, de 19 jovens testadas, duas eram 

portadoras do HIV, o vírus da Aids, e cinco tinham sífilis.

Maria*, 25, passou um ano morando no mangue, sendo oito meses grávida da terceira 

filha. Assim como Fernanda, dormia onde encontrava abrigo, inclusive nos barcos 

ancorados na cabeceira da ponte. “Ninguém quer saber de muriçoca depois de quatro 

dias acordada com droga na cabeça. Só dormia depois de fumar maconha e comer”, 

lembra.

Maria está afastada do mangue e das drogas, recebendo atendimento no programa 

Atitude, do governo do estado. Um trabalho lento que envolve o convencimento das 

“mulheres-caranguejo” a deixarem a situação de risco social com base no decreto 7053, 

do governo federal.

O documento dispõe sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua. 

Ela decidiu deixar a lama depois de o corpo dar sinais de enfraquecimento. “Passava a 

madrugada feito zumbi, circulando no meio do mato. Outras mulheres também fazem 

isso. A gente vira escrava da droga”, conta.

O efeito do crack encoraja na negociação variada com o cliente, na dormida desprovida 

de conforto e na caminhada pela escuridão do mangue. Tamanha coragem só cai por 

terra quando as meninas se deparam com despachos deixados por seguidores de religiões 

de matrizes africanas no meio do mangue. “Tenho medo de cruzar com um despacho 

desse”, confessa Juliana.

Fonte: Diário de Pernambuco

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