Elas fazem sexo no manguezal, sob efeito do crack. Com um histórico de desestrutura familiar e pobreza, estão na base da pirâmide da prostituição
Preservativos masculinos tomam o chão no percurso apressado feito sob sol a pino.
Desvendar o mangue da Avenida Prefeito Artur Lima Cavalcanti, em Santo Amaro, não
é tarefa para desavisados. Um dos símbolos da paisagem recifense é também esgoto
sexual, como diria Oswald de Andrade em seu poema Santeiro do Mangue. É abrigo de
uma “quase espécie”, a “mulher-caranguejo”. Seres dormentes pelos efeitos do crack e
por um histórico de desestrutura familiar e pobreza. Ocupantes da base da pirâmide da
prostituição, não possuem dentes, carecem de banho. Têm ferimentos ou marcas deles
pelo corpo. O dinheiro obtido no sexo barato feito na lama é gasto com drogas.
É manhã de um dia de semana. O movimento de clientes ainda é fraco se comparado
com o da tarde e da noite. Meninas e mulheres misturam-se aos caranguejos habitantes
da mesma lama salobra. Ao longo das trilhas construídas pelos passos constantes
na beira do mangue, prostitutas estão “malocadas” sob guarda-chuvas. Também
improvisam barracos de lona. Escondem assim o uso da droga.
Privacidade não existe na hora do sexo. “A gente faz em pé mesmo. Mas tem sofá lá
dentro, bicicleta de ginástica. Tem até colchão box. Tem árvore daquelas dobradas. Mas
não gosto das árvores. Cheguei a ver sangue nelas”, relata Juliana*, 23 anos. Os braços
de Juliana têm cicatrizes de ferimentos provocados por ela própria. Conta que cortou-se
em crises depressivas provocadas pelo uso do crack. “Cada ‘tiro’ que dava, me cortava”,
lembra, referindo-se à baforada no cachimbo.
Fome
Quando o efeito da droga passa, as mulheres buscam por comida e bebida. Mas vários
dias podem se passar sem que elas se deem conta da necessidade. “Tem cliente que
passa e dá comida. As colegas também oferecem pra gente”, conta Fernanda*, 19, com
corpo de menina de 12 anos e rugas em torno dos olhos comuns a mulheres maduras.
Quanto mais suja e deteriorada pelas drogas a mulher está, mais ela é procurada pelos
clientes, contam. E eles pertencem a variadas classes sociais e profissões. Também há os
casados.
À noite, o número de clientes aumenta, e com eles a degradação das meninas. O banho
é artigo supérfluo após o sexo. Quando desejam fazer a higiene, procuram a torneira
próxima à Ponte do Limoeiro, onde estão os pescadores.
Equipes sociais tentam prestar assistência a grupo
O mangue da Artur Lima Cavalcanti cheira a violência, na maioria das vezes
praticada por clientes ou falsos clientes. Fernanda perdeu os dentes da frente
depois de ser atraída por um homem que a arrastou por um dos braços pela
janela do carro. Maria passou a virada do ano amarrada a uma árvore em uma
mata do Recife. Estava grávida. “Fui salva por um caçador que passava na hora.”
Entre as mulheres, a violência é outra constante. A mesma que foi amarrada
ateou fogo em uma colega que dormia. A vítima teria lhe roubado R$ 10, um
cachimbo e uma pedra. “Nem sei se morreu, mas se tivesse morrido eu ficava
sabendo.”
Em junho, uma jovem escapou de morrer após ser esfaqueada por um
desconhecido. Outra mulher apareceu morta na lama e um homem foi vítima de
tentativa de homicídio. Há boatos de que um homem estaria tentando se vingar
das mulheres porque teria contraído o HIV.
O delegado Alfredo Jorge investiga os crimes, mas não confirma o suposto
vingador. “A tentativa de homicídio da mulher pode ter sido passional. Já a
vítima que apareceu morta pode ter sofrido morte súbita. Quanto ao homem, não
seria frequentador do local”, afirma Alfredo Jorge. O tráfico é intenso. “À noite,
carros de marca boa, de gente de classe alta, param para contratar meninas ou
comprar drogas.”
A venda do corpo por um pouco de crack
Meninas aguardam clientes para mais um programa que
irá financiar mais um dia de consumo de drogas
As meninas e mulheres prostitutas do mangue são, em sua maioria, moradoras de Santo
Amaro. Muito pobres, não possuem dinheiro para custear passagens para bairros mais
abastados, como Boa Viagem, onde a prostituição acontece nas avenidas Conselheiro
Aguiar e Domingos Ferreira. Além disso, são dependentes do crack, droga ofertada com
facilidade no lugar. “A prostituição é igual em todo canto, mas em Boa Viagem a menina
compra roupa, sandália. Aqui a gente vende o corpo pelo crack”, compara Juliana.
Ana Glória Melcop, da ONG Centro de Prevenção das Dependências e à frente do
Centro da Juventude e do Programa Atitude, ambos do governo do estado, destaca a
necessidade de uma abordagem mais eficaz junto a essas mulheres. Ana Glória planeja
levar para as prostitutas à Profilaxia Pós Exposição (PPE), fornecida pelo estado, na
intenção de reduzir as chances de contaminação pelo HIV após uma relação sexual de
risco.
“É preciso uma retaguarda da saúde, da educação”, diz Ana Glória. “A escola, por
exemplo, tem preconceito com elas. As mulheres necessitam de uma abordagem que as
faça perceber seus direitos e deveres”, afirma. “Sou contra a retirada forçada dessas
pessoas de lugares assim, por pior que sejam. Também sou contra o estilo de vida delas,
mas não concordo com a limpeza da cidade a todo custo”, opinou.
Em novembro de 2012, membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, a mesma que recebeu denúncias de 20
pontos críticos de prostituição na capital pernambucana, estiveram no mangue da Artur
Lima Cavalcanti para conhecer a realidade das meninas. A presidente da CPI, Erika
Kokay, chegou a rezar com as mulheres às margens da avenida. Mas de lá para cá, nada
mudou.
Um projeto da Comissão Pernambucana pela Paz, formada por moradores de Santo
Amaro, prevê uma transformação. A ideia é capacitar as mulheres para trabalhar como
guias dentro do mangue. O lugar passaria a receber visitas de estudantes.
Risco de doença não afasta clientes
Embalagens de camisinha são deixadas pelo chão
Apesar de as camisinhas se espalharem pelo mangue, a maioria dos homens pede para
fazer sexo sem proteção. As mulheres afirmam receber propostas de mais dinheiro
caso aceitem a relação sem preservativo. O último levantamento feito no lugar pela
Secretaria Municipal de Saúde constatou que, de 19 jovens testadas, duas eram
portadoras do HIV, o vírus da Aids, e cinco tinham sífilis.
Maria*, 25, passou um ano morando no mangue, sendo oito meses grávida da terceira
filha. Assim como Fernanda, dormia onde encontrava abrigo, inclusive nos barcos
ancorados na cabeceira da ponte. “Ninguém quer saber de muriçoca depois de quatro
dias acordada com droga na cabeça. Só dormia depois de fumar maconha e comer”,
lembra.
Maria está afastada do mangue e das drogas, recebendo atendimento no programa
Atitude, do governo do estado. Um trabalho lento que envolve o convencimento das
“mulheres-caranguejo” a deixarem a situação de risco social com base no decreto 7053,
do governo federal.
O documento dispõe sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua.
Ela decidiu deixar a lama depois de o corpo dar sinais de enfraquecimento. “Passava a
madrugada feito zumbi, circulando no meio do mato. Outras mulheres também fazem
isso. A gente vira escrava da droga”, conta.
O efeito do crack encoraja na negociação variada com o cliente, na dormida desprovida
de conforto e na caminhada pela escuridão do mangue. Tamanha coragem só cai por
terra quando as meninas se deparam com despachos deixados por seguidores de religiões
de matrizes africanas no meio do mangue. “Tenho medo de cruzar com um despacho
desse”, confessa Juliana.
Fonte: Diário de Pernambuco