quarta-feira, 20 de julho de 2011

21 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente


O legado de Antonio Carlos Gomes da Costa para a transformação de "corações e mentes" em defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes

Irandi Pereira

 
Irandi Pereira é pedagoga e defensora dos direitos infantojuvenis
Todos os anos sou instada por diversos meios (mídia, centros de estudos, movimento social, conselhos de direitos, discentes) a fazer balanço sobre a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no território brasileiro. Nesse especial dia de comemoração de 21 anos de sua promulgação fiz a opção de homenagear um dos principais “Redatores do ECA” o mestre Antonio Carlos Gomes da Costa por sua trajetória antes, durante e depois da aprovação da lei. Peço licença aos demais redatores e colegas ativistas do movimento social pelos direitos da criança e do adolescente por essa escolha e, também, desculpas pelo tom emocional a que me dirijo nesse momento de comemoração de uma lei que representa a garantia dos direitos de crianças e adolescentes.      

A transformação de minha prática na área da defesa dos direitos de crianças e adolescentes se deve à presença constante do educador social Antonio Carlos Gomes da Costa desde os anos de 1980. Eu, no meu retorno à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de São Paulo (hoje, Fundação CASA) e ele na Fundação Estadual do Bem-Estar de Minas Gerais.

Essa aproximação se deveu a persistência da ativista pelos direitos humanos de crianças e adolescentes Maria Ignês Bierrenbach que ocupava, à época, o cargo de Presidente da FEBEM/SP na gestão do Governador Franco Montoro quando se buscava a revisão política e institucional da área, através do projeto “FEBEM: uma instituição que se revê”. Muitos foram os espaços abertos para a reflexão, debate e difusão de ideias, concepções e práticas sobre a política pública de atenção à infância e adolescência brasileira que se encontrava à margem de patamares mínimos de dignidade humana.

O país ainda vivia sob a égide da doutrina da segurança nacional adotada pelo regime militar ditatorial que se iniciara em 1964 e perdurara até 1985. Este período para o segmento infanto-juvenil foi marcado pela adoção da doutrina da situação irregular amparada pelo Código de Menores (1979) e pela Política Nacional de Bem-Estar do Menor (1964) que colocava esse grupo na condição de objetos ou de tutela da intervenção estatal.

 Num desses raros momentos e espaços da luta política em favor dos direitos humanos da criança e do adolescente apareceu Antonio Carlos Gomes da Costa, presidente da FEBEM de Minas Gerais, com ideias revolucionárias no olhar e trato dos que viviam nos porões, sótãos e ou masmorras dos grandes complexos institucionais de atendimento espalhados pelo país. 

Lembro bem do dia, ou melhor, da tarde em que ele chegou ao antigo complexo “Quadrilátero Tatuapé” (FEBEM/SP) para conhecer a Fundação (a maior de todas as Fundações) e dialogar, a partir da troca de experiência, com os socioeducadores  sobre as possibilidades de transformação do sistema de atendimento, portanto, das concepções e práticas vivenciadas até então pelas crianças e adolescentes, considerados historicamente como “menores” delinquentes, carentes, órfãos e abandonados.

Ele olhava tudo e a todos naquele gigantesco espaço que se constituía o “Quadrilátero Tatuapé” até chegar ao Auditório Modelo, local que, na ocasião, servia como palco para a realização de grandes eventos incluindo as assembléias de trabalhadores (socioeducadores) da fundação. O espaço estava lotado de colegas – assessores, diretores, equipe técnica, professores, vigilantes, cozinheiras, copeiras, lavadeiras, pessoal do administrativo - e de alguns convidados. Começou sua primeira aula dialogada, numa série de muitas outras sobre a presença do educador na vida dos meninos e meninas institucionalizados em espaços públicos com pouca ou nenhuma capacidade de convivência humana digna. Ele apostava na capacidade do socioeducador de intervir em espaços como esses, argumentando que a liberdade de pensamento é muito difícil de ser subtraída dos “corações e mentes”, sobretudo, de crianças e adolescentes.  

Toda vez que dirigia ao seu público - educadores sociais, gestores, autoridades do sistema de justiça - mirava seu olhar para um ponto no espaço em que se encontrava como que buscando a inspiração ou mesmo aprovação dos colegas para a construção dos princípios da “pedagogia da presença”.      

Em suas centenas e centenas de aulas dialogadas e diante de uma plateia especial, educadores sociais, contava sobre as dificuldades que teve na condição de presidente da FEBEM/MG no trato da discricionariedade e violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. No enfrentamento da questão promovia eventos como as “Quintas em Debate” na instituição como uma das possibilidades de reflexão e questionamento dos princípios doutrinários da situação irregular presente na legislação (Código de Menores), em documentos de políticas públicas (PNBEM), como também nos conteúdos de Portarias, Provimentos e Regimentos da época e, em especial, nas práticas do então sistema público de bem-estar.

Dentre suas contribuições cabem destaque a temas relativos à Educação (educação escolar e socioeducação), Educação Profissional e Trabalho que ocuparam parte substantiva de seu tempo. Quem não se lembra de questões como “educação para o trabalho, educação no trabalho e educação pelo trabalho” de adolescentes e jovens, como da tese da participação social de crianças, adolescentes e jovens nos diversos espaços da vida coletiva conhecida como “protagonismo infanto-juvenil”. E ainda, sobre a política socioeducativa, especialmente, no que se refere às metodologias de intervenção junto ao adolescente em conflito com a lei. A construção da categoria socioeducador foi para mim uma de suas maiores preocupações porque tem possibilitado rupturas paradigmáticas no olhar e trato cotidiano com adolescentes em conflito com a lei: de “funcionários” de um sistema de bem-estar que, apesar da nomenclatura, na prática era o oposto, para a de socioeducadores de um sistema fundado na ética e prática de direitos humanos como toda sociedade moderna e justa deseja.

O desenho sobre a política de atenção à infância e adolescência sob a ótica dos direitos humanos e, portanto, da garantia da proteção integral teve no mestre Antonio Carlos Gomes da Costa seu principal construtor quando participou do Grupo de Redação para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ele mesmo contava que a maioria das reuniões do Grupo acontecia num espaço exíguo no centro da cidade de São Paulo tendo à disposição dos redatores um microcomputador para registro dos debates, propostas e retroalimentação das contribuições advindas de todas as regiões do Brasil.

Numa de suas últimas aulas dialogadas em São Paulo comentou da premência de guardar parte de seu tempo para melhor aprofundamento conceitual e caracterização de cada uma das medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto do ponto de vista dos princípios fundamentais da política de direitos humanos e sua relação estreita com a socioeducação. Ele afirmava sempre que para ser educador era preciso ser justo. Por isso era necessário ao socioeducador estudar e vivenciar práticas que pudessem romper com o olhar e trato discricionário sobre meninos e meninas em conflito com a lei por considerar que isso atrapalha a visão de todos no enfoque da questão. Na condição de mestre nos orientava para navegar em águas seguras, mas não sem conflitos.  Sua morte prematura nos deixa esse desafio.

A “aventura pedagógica” de Antonio Carlos está presente na sua vasta e diversificada produção (bibliográfica e técnica). São mais de 80 publicações entre livros, artigos, resenhas, material didático e pedagógico e em diferentes áreas do conhecimento (filosofia, história, sociologia, pedagogia, direitos) e até literatura. Em sua produção podemos perceber o olhar interdisciplinar na construção do conhecimento sobre a infância, adolescência e juventude e políticas públicas.

Se hoje temos uma literatura na área, mesmo que incipiente, devemos isso à militância cotidiana de Antonio Carlos. Como educador nos advertia da necessidade constante da reflexão sobre a nossa prática cotidiana no sentido de promover hoje a diferença em relação a um passado não tão distante. Ele tem nos inspirado à sistematização do conhecimento e também das diferentes práticas que acontecem na ação socioeducativa, pois em seu entendimento a nossa capacidade de escuta e tomada de decisão sobre/com os projetos de vida de cada adolescente devem romper com modelos excludentes e discricionários que tanto combatia. Acredito que a sua busca residia na ideia de que o tema da socioeducação pudesse ganhar vez e voz também no mundo acadêmico brasileiro. 


Fonte: Promenino

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