Créditos: Secolectivoforzoso
A cada ano que passa os desastres causados pelas chuvas de verão somam centenas de vítimas pelo país. Com as perdas materiais e o desespero em ver o pouco que se tem se tornar “nada”, não é só a estrutura física que é abalada. O rastro de destruição e o cenário que lembra um pós-guerra afeta, principalmente, o psicológico de milhares de crianças e adolescentes.
“O mais impactante é ver aquele cenário de guerra, ver corpos dilacerados em árvores e no meio dos escombros, isso afeta demais as crianças e adolescentes”, afirma o coordenador da ONG Viva Rio, Tião Santos. “Nessas horas de tragédia, o Estado não pode só pensar nas sirenes e questões imediatas. Há como preparar esses meninos e meninas, principalmente no atendimento psicológico”. Fundada em dezembro de 1993 como resposta à crescente violência no estado, a organização atua nas áreas de pesquisa, trabalho de campo e formulação de políticas públicas com o objetivo de promover a cultura de paz e a inclusão social.
Para Santos, a criança ou adolescente em situações de desastres naturais sofrem impactos físicos e psicológicos que demandam cuidados e podem permanecer por toda a vida. “Muitas crianças são soterradas ou ficam presas nos escombros, perdem capacidade motora e passam por traumas que podem ser irreversíveis. Há também a exposição a doenças, violências e outros riscos.”
Segundo o relatório “Vulnerabilidade das Megacidades Brasileiras às Mudanças Climáticas”, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), os impactos à saúde podem ser divididos em imediatos, de médio e de longo prazo. O primeiro inclui afogamentos e ferimentos das vítimas, já os de médio prazo são as doenças que podem ocorrer por causa do contato ou ingestão de água contaminada, como leptospirose, doenças intestinais e hepatite A. Em longo prazo, pode ocorrer um aumento de doenças psiquiátricas, como ansiedade e depressão. “Os efeitos no longo prazo incluem aumento de suicídios, alcoolismo e desordens psicológicas, especialmente em crianças”, afirma o estudo.
“Todos sofrem muito com os desastres, e por vários motivos. Os serviços públicos são atingidos, em maior ou menor grau, e trazem interrupções prejudiciais à população”, explica o major da Brigada Militar e representante da Defesa Civil do Espírito Santo, Anderson Pimenta. O estado capixaba foi um dos mais afetados pelas chuvas nesse verão e ainda lida com a situação de centenas de desalojados e com a destruição.
Faltas e Perdas
Ter que deixar o bairro onde mora, criou raízes e identidade, assim como abandonar a escola e outras relações é uma grave consequência para as vítimas, analisa Santos. “O deslocamento também é considerado crítico. Por não ter qualidade de vida digna, esse drama da insegurança é diário, as crianças sentem essa insegurança e isso influencia em sua vida de maneira geral, no cotidiano e nas escolhas futuras.”
Para Santos, os prejuízos sociais e econômicos seriam menores se houvesse qualidade e seriedade dos órgãos públicos e atendimento adequado. “Há soluções viáveis que podem ser tomadas com equilíbrio, coragem e respeito. Se isso é oferecido, como acontece com mais raridade, as pessoas aceitam o atendimento, aceitam morar em outro lugar e reconstruir a vida.”
Além de problemas na separação das famílias em ambiente de abrigos temporários, o bombeiro da Defesa Civil traz ainda outra preocupação. “Muitas vezes há exposição exagerada desses sujeitos de direito por parte da mídia, o que não é nada recomendado. Nos abrigos, a criança também perde a proteção existente no lar original”.
Nesse contexto, seres humanos ainda em formação lidam desde cedo com exposições e perdas, sem a mínima garantia de direitos. “A perda é bem frequente, da casa, dos bens materiais, de familiares, de funções motoras. Vemos famílias inteiras com suas casas condenadas pela Defesa Civil e pelo Estado, pois não é oferecido nada antes dos desastres, fazendo com que o depois não tenha muitas alternativas”, aponta Santos.
Dentro do ambiente escolar, questões como a falta de estrutura e a qualidade do ensino são latentes. “As escolas também sofrem por causa das tragédias, são destruídas ou usadas como abrigo. As crianças que se deslocam nas comunidades muitas vezes não conseguem se matricular, pois aquela escola mal consegue atender a demanda daquele bairro”, diz o coordenador da ONG.
Uma das formas de diminuir o risco para crianças e adolescentes em situações de desastres seria incluir capacitação nas escolas. “Com um ensino que possibilite maiores conhecimentos em prevenção de risco. Há iniciativas nessa área, mas ainda incipientes”, explica Pimenta.
Para além dos desastres naturais, há ainda o cotidiano dessas crianças já marcado por situações de vulnerabilidade, como a falta da garantia de direitos e exposição constante à violência. “Imagina o trauma dessas crianças que moram em favelas e convivem com confronto armado do dia-a-dia entre traficantes e policiais. A violência e o descaso das autoridades roubam a infância e os direitos das crianças”, relata Santos.
“Mínimo do mínimo”
Até agora, a região Sudeste foi a mais impactada pelas chuvas torrenciais desde o final do ano passado, especialmente os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. O levantamento do número de pessoas prejudicadas continua incerto pela dificuldade de acesso às áreas afetadas.
Os últimos dados divulgados pela Defesa Civil de Minas apontam que o período chuvoso, considerando de outubro a dezembro de 2013, deixou 3.410 desalojados e 744 desabrigados – pessoas que, além de perderem suas casas, necessitam de abrigos públicos. Além disso, 6.148 casas foram danificadas e 67 destruídas. No Espírito Santo, a situação é ainda pior. Os dados no mesmo período mostram que 20.902 pessoas deixaram suas casas, sendo 3.535 desabrigadas e 17.367 desalojadas, em 43 municípios atingidos.
Ao sobrevoar os municípios mais afetados pelas recentes chuvas em Minas Gerais, a presidente Dilma Rousseff anunciou a liberação do Cartão de Desastre para os municípios que decretaram estado de emergência ou de calamidade, além de ações conjuntas com os governos de Minas e Espírito Santo. O Cartão pode ser usado pelo município para pequenos gastos na assistência de vítimas. Não há quantidade especificada, porém todos os gastos deverão ter prestação de contas.
Pioneiro no Brasil, o Rio de Janeiro já adota estratégias emergenciais desde 2011, após um dos maiores desastres naturais da história do país, que deixou mais de 900 mortos na região serrana. O monitoramento de chuvas e rios, feito pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), comunica autoridades e envia mensagens de texto por celular para pessoas cadastradas no sistema. O programa da Defesa Civil estadual, ao receber um alerta, aciona sirenes em 100 comunidades da capital e outras 54 em quatro cidades serranas, com sons de corneta e mensagens que pedem que a área seja desocupada.
“Essas ações são o mínimo do mínimo. Temos hoje pelo menos 40 mil imóveis no Rio de Janeiro que precisam sair de área de risco. A sirene pode alertar, mas em uma tragédia como a ocorrida em 2011 ela não vai adiantar. As pessoas estão expostas e fragilizadas, essa é uma ação preventiva, mas que não basta”, aponta Tião.
Em momentos como esse, o coordenador da Viva Rio afirma que o Estado não pode só pensar nas sirenes e questões imediatas, mas principalmente na prevenção, garantia de direitos básicos e no atendimento psicológico. “Montamos um centro social de atendimento em Petrópolis, Teresópolis e Friburgo. As crianças participavam de atividades lúdicas para esquecer as imagens e perdas, com oficinas de brincadeiras e área de lazer, por exemplo. O resultado é efetivo.”
Fonte: Promenino